De Henry Ford a Elon Musk: os perigos de tentar formar um império automobilístico global

Elon Musk em lançamento de planta da Tesla na Alemanha. Foto: Pool/Getty Images Europe

As tentativas de construir um império automobilístico global remontam às décadas de 1910 e 1920, quando Henry Ford estabeleceu fábricas na Grã-Bretanha e na Alemanha para o Modelo T, e a General Motors respondeu comprando montadoras estrangeiras. Um século depois, essa ambição corre o risco de derrapar na pista.

A Tesla é, de certa forma, a Ford do século XXI. Ela tem uma vantagem de pioneirismo envolvendo uma nova tecnologia, um líder carismático — Elon Musk — e o objetivo de fabricar globalmente. Embora tenha aberto suas primeiras fábricas na China e na Alemanha apenas em 2019 e 2022, respectivamente, a empresa conseguiu dividir sua receita em 50% na América do Norte, 30% na Ásia-Pacífico e 13% na Europa no ano passado, mostram as estimativas da FactSet.

Isso ainda não é tão diversificado quanto marcas de carros de luxo como a BMW, mas não está longe da Toyota, a pretendente mais próxima de ser líder mundial em automóveis. Dado o objetivo da Tesla de se aproximar do mercado de massa, esses são bons números.

No entanto, nos últimos três meses, as ações da Tesla caíram quase pela metade, em parte porque o papel de Musk no governo Trump — ecoando as próprias incursões políticas de Henry Ford — criou uma reação do consumidor em casa e no exterior, derrubando as vendas, especialmente as europeias.

Contudo, o que ameaça enviar o sonho já frágil de uma montadora globalizada para o lixo são duas tendências mais profundas.

Uma delas é o protecionismo. Na China, essas políticas há muito promovem os veículos domésticos em detrimento dos fabricantes ocidentais, gerando protestos para que autoridades americanas e europeias impeçam os chineses de acessar seus próprios mercados.

Agora, o presidente Trump está até ameaçando impor tarifas sobre as cadeias de suprimentos que as montadoras americanas e europeias espalharam pelo Canadá e pelo México.

Leia mais

  • Tesla derrapa na bolsa e tem o pior desempenho entre as gigantes dos EUA
  • GM e Hyundai negociam compartilhamento de vans e picapes envolvendo Brasil

Ao mesmo tempo, ficou claro que o ritmo de adoção de veículos elétricos será muito diferente entre os países, dificultando ainda mais atender simultaneamente a diferentes mercados.

De fato, os investidores começam a se perguntar se os atores regionais antes vistos como pequenos demais para competir podem realmente levar vantagem.

A francesa Renault cresceu 25% no mercado de ações em seis meses, com base em um plano de recuperação baseado em parcerias, não em tamanho. Os executivos externalizaram a produção de baterias e posicionaram as cadeias de suprimentos localmente, além de ainda unirem os custos de pesquisa e fabricação com a Nissan, aliada de longa data.

E também estão usando parceiros chineses para dar saltos no segmento de orçamento: o próximo Renault Twingo deve ser um dos EVs mais baratos do mundo, custando menos de 20 mil euros, o equivalente a US$ 21.810.

Enquanto isso, as ações da Stellantis caíram 16%. O megaconglomerado foi criado em 2021 pela fusão da Fiat Chrysler com a antiga rival doméstica da Renault, o Grupo PSA, para internalizar as economias de escala de suas 14 marcas.

Embora o corte de custos inicialmente tenha superado as expectativas, as vendas de modelos-chave fracassaram em 2024: jipes e picapes Ram se acumularam nas concessionárias como resultado dos preços altos. Em dezembro, logo após a demissão do CEO Carlos Tavares, o lançamento da Ram 1500 REV totalmente elétrica foi adiado para 2026, mesmo com o Ford F-150 Lightning ganhando terreno.

Se a estratégia da Tesla de vender uma única marca globalmente é uma reminiscência da Ford original, a abordagem da Stellantis de se expandir por meio de vários fabricantes locais remonta a Alfred P. Sloan, da GM, na década de 1920.

A história sugere que esta última é ainda mais difícil de funcionar. A primeira tentativa da GM, que incluiu a aquisição da Vauxhall no Reino Unido e da Opel na Alemanha, foi frustrada pelo protecionismo e pela Grande Depressão. Ela tentou novamente nas décadas de 1980 e 1990, comprando a Saab e projetando uma carroceria comum, a “J-body”, que poderia ser vendida em várias regiões — Chevrolet Cavalier, Opel Ascona e Isuzu Aska eram todas variações dela. A Ford tentou algo semelhante com o Mondeo, enquanto adquiria Jaguar, Volvo e Aston Martin.

No final, as marcas extras se mostraram difíceis de gerenciar, a J-body foi criticada por seu baixo desempenho e o Mondeo só prosperou na Europa. Hoje, a Ford e a GM têm uma pegada europeia muito menor.

O problema é que manter e atualizar uma grande linha de produtos é uma tarefa assustadora, especialmente com os gostos dos consumidores variando amplamente entre as geografias. Para a Stellantis, algumas marcas como Lancia e Maserati podem exigir muito esforço de revitalização, enquanto outras, como a Chrysler, se tornaram relíquias do passado, ou não conseguem crescer sem canibalizar o resto.

A força da Fiat, por exemplo, se deve principalmente à linha 500, que é um carro chique para os moradores de cidades europeias.

O Renault está prestes de lançar o Twingo e se tornar um dos carros elétricos mais baratos do mundo. Foto: Krisztian Bocsi/Bloomberg

É certo que as plataformas modulares compartilhadas se tornaram padrão na indústria automobilística e estão por trás de alguns sucessos transnacionais.

A Toyota é a primeira entre elas, combinando o foco em uma única marca acessível com uma reputação de confiabilidade, uma abordagem de fabricação localizada e algumas arquiteturas comuns compatíveis com híbridos. Isso possibilitou, por exemplo, mudar facilmente para a fabricação do subcompacto Yaris apenas para o mercado europeu, enquanto mantinha o Corolla, maior, nos EUA.

Apesar de seus problemas recentes, a Volkswagen da Alemanha também é um paradigma de como isso pode ser feito em todas as marcas, com a qualidade dos materiais essencialmente determinando se um carro construído na mesma plataforma é um Skoda barato, um Audi premium ou um Volkswagen intermediário.

Mas mesmo essas empresas, que têm uma continuidade de produto que falta à Stellantis, não conseguiram ser tudo para todos em todos os lugares. Os consumidores nos EUA gostam dos SUVs Tiguan e Atlas da Volkswagen e do sedã Jetta, mas evitam seus modelos mais acessíveis.

A Toyota tem uma participação de mercado relativamente pequena na Europa e tem tido dificuldades na China, em parte devido ao seu apego a veículos híbridos. Depois de ver seu modelo elétrico bZ4X, outrora problemático, no topo das vendas na Noruega, a empresa japonesa está finalmente se voltando para carros elétricos a bateria.

Mas, em última análise, o fato de as vendas de veículos elétricos terem superado as expectativas na China e na Escandinávia, decepcionado no resto da Europa e perdido para os híbridos nos EUA é uma grande dor de cabeça para os fabricantes que desejam estar em todos esses países, ao mesmo tempo mantendo aspectos em comum e desempenho consistente.

Isso se dá porque a indústria está mudando de plataformas que podem acomodar versões elétricas e de combustão do mesmo carro — como muitos modelos Peugeot, Citroën e Opel fazem — para o uso de arquiteturas dedicadas.

Os investidores há muito viram a eletrificação criando alguns vencedores globais. Em vez disso, pode ser outra força histórica favorecendo campeões mais regionalizados.

Escreva para Jon Sindreu em [email protected]

Adicionar aos favoritos o Link permanente.