Apagão de mão de obra coloca em risco crescimento de empresas em todos os setores

A dificuldade de encontrar mão de obra já causa calafrios nas empresas em todo o país. Os setores mais impactados pela falta de trabalhadores começam a adiar investimentos, atrasar entregas e até rejeitar clientes. É o caso da construção civil, onde quase todas as companhias vivem o drama de não conseguir preencher grande parte das vagas ociosas.

Isso acaba se tornando um risco ao próprio negócio. Uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV-Ibre) mostra que nos canteiros de obras de mais de 82% das construtoras faltam profissionais e sobram vagas. Como resultado, 21% das companhias passaram a atrasar a entrega das edificações.

Outro problema é que a escassez de força de trabalho pode também começar a afetar a inflação. Prova disso é que 18% das empresas do setor de construção já estão repassando o aumento desses custos aos preços, segundo a pesquisa.

A falta de mão de obra qualificada se tornou a principal preocupação de CEOs brasileiros neste ano. Acima até das incertezas macroeconômicas. Um levantamento da PWC com quase 5 mil executivos-chefes no mundo todo mostra que a dificuldade de contratar foi citada como o principal risco ao negócio em 2025 pelos entrevistados no Brasil. Foi o único país a apontar esse cenário no topo das preocupações.

Até gigantes empresariais sentem dificuldades

O tema afeta inclusive grandes empresas como a Gerdau, maior produtora de aço do Brasil. Segundo Gustavo Werneck, CEO da companhia, a falta de mão de obra é um fenômeno percebido em diferentes funções e faixas salariais, e por isso é pauta de “debate intenso”. O executivo observa, por exemplo, que faltam estudantes de engenharia.

A lacuna é tamanha que a Gerdau seria capaz de contratar, sozinha, todos os engenheiros metalurgistas formados atualmente. Preocupada com esse cenário, a companhia está trabalhando em parceria com instituições de ensino para incentivar a entrada de alunos nessa área.

Mas não é só isso. Werneck, que está no comando da Gerdau desde de 2018, vê um impacto negativo sobre a oferta de mão de obra vindo da forma como programas sociais são oferecidos, em especial o Bolsa Família. Ele diz haver um “desincentivo para que brasileiros entrem no mercado de trabalho formal”.

O problema ocorre porque, se os inscritos no Cadastro Único (CadÚnico), que controla a entrada dos beneficiários dos programas sociais, conseguirem um emprego com carteira assinada correm o risco de perder esse acesso. É que, ainda que o regime CLT em si não seja um impeditivo para receber o benefício, a formalização leva o salário a ser informado automaticamente à Receita. Já a renda informal, na prática, tem menos transparência.

A saída do Bolsa Família, por exemplo, pode acontecer se a renda per capita do grupo familiar superar meio salário mínimo (R$ 754,50 em 2025). A Associação de Supermercados de São Paulo (Apas) enviou no fim de março uma solicitação ao governo de mudanças nesses parâmetros, como forma de incentivar o preenchimento de quase 40 mil vagas ociosas no setor apenas no mercado paulista.

Empresas recorrem a escola própria e cashback

Em indústrias que historicamente enfrentam problemas para encontrar funcionários mais qualificados, como a siderurgia e o de óleo e gás, o momento de falta de trabalhadores ganhou ainda mais relevância. É que agora essas empresas não lidam apenas com a dificuldade estrutural: elas enfrentam também uma grande concorrência de outros setores. Ou seja, os profissionais que elas buscam podem escolher entre uma profusão de ofertas de vagas em diversas áreas como varejo, serviços e tecnologia.

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Ciente desse gargalo, a Foresea, companhia especializada na operação de sondas de petróleo em águas profundas, tomou uma ação preventiva. Passou a contratar, já com carteira assinada, dezenas de interessados sem conhecimento algum na área. E os candidatos nem precisam de diploma universitário para entrar nessa iniciativa. O programa se estende a qualquer interessado a partir do ensino médio completo.

Os selecionados recebem um ano de treinamento teórico antes de assumirem funções operacionais. Depois passam mais um ano em atividades supervisionadas. O Programa de Desenvolvimento Offshore (PDO) “foi uma maneira de a gente preencher todos os ‘gaps’ dos nossos quadros técnicos”, afirma o diretor de Pessoas e Gestão do grupo, Hygo Santos.

O PDO, criado na metade do ano passado em uma parceria com a Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan), foi pensado também como uma maneira de reter os funcionários. Isso porque, no atual cenário de mercado de trabalho aquecido, as empresas têm aumentado o assédio aos empregados das rivais. A taxa média do setor em termos de perda de profissionais para seus concorrentes já alcança 30%, conta o diretor da Foresea. “Isso traz uma insegurança muito grande.”

Com o desemprego perto das mínimas históricas, as empresas de vários setores têm usado a criatividade para preencher suas vagas antes da concorrência. Vale tudo. Até oferecer cashback em troca de indicações.

É a tática usada pela usina de açúcar e álcool Santa Terezinha de Maringá, no Paraná. A companhia acumula 421 vagas sem preenchimento. Com isso, passou a oferecer prêmios em dinheiro aos próprios funcionário para que indiquem pessoas aos postos disponíveis.

A usina oferece uma bonificação que pode alcançar R$ 1 mil por contratação. O empregado pode indicar um candidato e, se a pessoa for contratada, ganha R$ 200. O grupo deposita mais R$ 800 na conta de quem trouxe o novo funcionário, caso o novo profissional permaneça na companhia.

Milhões de vagas sem preencher

A quantidade de empregos que continuam vagos na economia brasileira já pode ter superado a casa do milhão. E deve aumentar neste ano. Esse é o retrato de um mercado de trabalho com uma taxa de desemprego no menor nível desde 2013, segundo o IBGE. Mas também é o resultado de fatores estruturais, conjunturais e até comportamentais, como a “uberização” das relações de trabalho e o baixo investimento em qualificação da mão de obra no país.

A lista de setores que reportam dificuldades nas contratações é longa. A associação dos supermercados brasileiros (Abras) contabiliza 357 mil vagas que as redes não conseguem preencher. As companhias de tecnologia no país têm outros 200 mil empregos para os quais não existem profissionais habilitados, segundo a Associação das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação e de Tecnologias Digitais, a Brasscom.

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Já na manufatura, a Confederação Nacional de Indústria (CNI) cita ao menos 2,2 milhões de novos profissionais que precisarão ser treinados para suprir a demanda dos setores industriais até 2027. Isso sem contar as centenas de milhares de vagas ociosas em setores como construção, serviços, varejo e energia.

A falta de profissionais está acontecendo em todos os setores, afirma o economista e coordenador das sondagens empresariais e de indicadores de mercado de trabalho no FGV-Ibre, Rodolpho Tobler. Um levantamento da instituição no início do ano mostra que 58% das empresas brasileiras relatam dificuldade em contratar. “A atividade aqueceu demais e o mercado de trabalho ficou bem mais dinâmico e competitivo”, diz o especialista.

A pesquisa mostra ainda que, na média de todos os setores, 17,5% dos grupos empresariais já começam a atrasar entregas. Além disso, 8,4% têm rejeitado novos clientes pela impossibilidade de atender a demanda sem poder contratar mão de obra. E 15,9% das companhias vão rever preços e repassar aumento de custos ligados a questões como aumento de benefícios e de salários oferecidos.

A pesquisa da FGV-Ibre aponta que quatro setores têm sofrido mais com a escassez de mão de obra. Na construção, 82,4% das companhias relataram dificuldade; no varejo ampliado, o percentual alcançou 77,3%; na indústria, chegou a 76,8%; e nos serviços, a 76,5%.

CEOs veem risco na falta de mão de obra

No Brasil, a falta de mão de obra qualificada virou a principal dor de cabeça dos CEOs. É o que mostra um estudo global da PWC feita com 4,7 mil executivos-chefes em todo o mundo.

Os país foi o único onde os executivos-chefes apontaram o apagão de profissionais como principal ameaça ao negócio em 2025. No levantamento, os brasileiros colocaram o tema no topo da lista de riscos neste ano, com 30% de menções. No segundo lugar, aparece a instabilidade macroeconômica, com 27% de citações, seguida de riscos cibernéticos, que teve 26%.

Em outro levantamento, o do Índice de Confiança Robert Half (ICRH), os resultados mostram que 67% dos especialistas em recrutamento veem o cenário de mercado de trabalho apertado sem mudança pelo menos nos próximos seis meses.

Maria Sartori, diretora de mercado da Robert Half ressalta que o cenário atual se aproxima de um momento de pleno emprego no Brasil. “Se a gente olhar para o mercado de profissionais com qualificações mais elevadas, sem considerar os menos qualificados, o índice de empresa que enfrentam dificuldade de contratação alcança 84%.”

Uberização do trabalho

Além do desemprego em taxas historicamente baixas, a “uberização” das relações de trabalho adiciona uma dificuldade a mais especialmente nos setores que empregam trabalhadores de menor escolaridade. Tobler, da FGV, explica que a adesão de um volume significativo de pessoas ao trabalho em aplicativos de entregas e de transporte, como Uber e 99, tem atrapalhado os empregos formais.

“Tem essa mudança nos últimos sete anos”, aponta o pesquisador. A uberização tem um impacto maior entre os setores onde a exigência por qualificação é menor, como construção e varejo. “Há um volume grande de pessoas que consegue rendimento maior do que um ou dois salários mínimos por meio dos apps. E fica essa ideia de que vão ganhar mais do que no mercado de trabalho formal.”

O vice-presidente da Abras, Marcio Milan, reconheceu, em entrevista coletiva, haver ainda uma mudança comportamental dos mais jovens em relação ao primeiro emprego. “O supermercado era a porta de entrada de jovens para a empregabilidade, mas agora o perfil dessa faixa etária está mudando.”

Tobler, da FGV-Ibre, acredita que a geração Z, que começa a chegar ao mercado de trabalho, tem uma relação muito diferente com o emprego com carteira assinada, quando comparado aos mais velhos. Para o pesquisador, enquanto gerações anteriores até comemoravam uma contratação no regime CLT, os profissionais na faixa dos 20 e poucos anos valorizam horários mais flexíveis e menos formalização. “É uma geração apoiada na tecnologia que têm acesso a formatos diferentes de emprego, como, por exemplo, trabalhar remotamente para empresas em outros países.”

(Colaborou Lucinda Pinto)

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