Por Que Investidores Devem Repensar a Gestão de Riscos do Sistema Alimentar?

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Em um mundo cada vez mais marcado pela volatilidade geopolítica, pelas perturbações climáticas e pela instabilidade social, uma das vulnerabilidades mais subestimadas está, silenciosamente, nos nossos pratos: o sistema alimentar global. Apesar dos dados alarmantes e do estresse visível nas cadeias de suprimento, muitas empresas ainda tratam as divulgações ambientais como meros protocolos regulatórios.

Em um movimento extraordinário que rompe com o discurso oficial corporativo e com o greenwashing, um grupo anônimo de executivos seniores da Inside Track x Food, empresa de tecnologia especializada em gestão de gastos e análise de dados para o setor de food service do Reino Unido, divulgou um raro e franco memorando alertando que o setor caminha para uma instabilidade sem precedentes, e que os investidores estão perigosamente desinformados. Isso não é ativismo climático. É um pedido de socorro vindo do mais alto nível de governança.

O ponto central: nosso sistema alimentar não é resiliente

Segundo o memorando, não se pode mais considerar garantidos o rendimento, a qualidade e a previsibilidade das regiões fornecedoras globais. A degradação do solo, a escassez de água e a volatilidade climática se tornaram ameaças operacionais imediatas.

Ainda assim, as estratégias de mitigação apresentadas aos investidores são frequentemente insuficientes ou enganosas. “O que era uma ameaça de longo prazo agora é uma ameaça de curto prazo”, afirma o documento. “O equilíbrio das ações precisa mudar.”

Estruturas como o Força-Tarefa sobre Divulgações Financeiras Relacionadas ao Clima (TCFD), Força-Tarefa para Divulgação Financeira Relacionada à Natureza (TNFD) e a Diretiva de Relatórios de Sustentabilidade Corporativa (CSRD) estão sendo tratadas como tarefas burocráticas, em vez de diretrizes estratégicas sobre riscos e oportunidades relacionados ao clima.

Enquanto isso, as empresas seguem concentradas na eficiência de curto prazo, ignorando os riscos sistêmicos que se acumulam em suas cadeias de suprimento. Richard Zaltzman, CEO da EIT Food, comunidade de inovação alimentar da Europa, diz que o setor financeiro está complacente quanto à sua compreensão dos riscos inerentes ao setor de alimentos e também quanto às necessidades do setor para manter a estabilidade socioeconômica.

“A Primavera Árabe foi desencadeada, em parte, pelos picos nos preços do trigo. Eventualmente, esse deslocamento de risco vai voltar para morder quem o ignorou”, diz Zaltzman. Seu alerta ecoa a principal mensagem do memorando: o que antes era visto como risco climático de longo prazo agora representa uma ameaça iminente à lucratividade, à estabilidade do fornecimento e à ordem geopolítica.

Getty Images

A degradação do solo tornou-se uma ameaça que exige ações de mitigação imediatas

A tempestade perfeita: caos climático encontra complacência corporativa

O memorando destaca que eventos climáticos extremos na Espanha já afetaram o acesso do Reino Unido a tomates, saladas e brócolis, enquanto choques globais têm prejudicado o fornecimento de cacau, café e óleo de girassol.

Muitas empresas estão apostando em estratégias vagas para mudar suas fontes de suprimento para novas regiões, mas o relatório considera isso uma ilusão perigosa. “Não podemos todos encontrar suprimentos em outros lugares ao mesmo tempo em que outras empresas e outros países também estão tentando fazer o mesmo”.

O documento também aponta uma falha cultural: o pensamento de curto prazo domina as salas de reunião, enquanto os departamentos jurídico, de auditoria e de risco permanecem isolados e despreparados para enfrentar os desafios que se apresentam. Ao mesmo tempo, as empresas priorizam boas notícias em vez da honestidade — deixando os acionistas com uma falsa sensação de segurança.

Risco sistêmico encoberto pelos mercados

Apesar de anos de alertas, a comunidade de investimentos ainda não assimilou plenamente a escala do risco associado ao sistema alimentar. O capital continua fluindo para setores de alto crescimento, como a inteligência artificial, deixando o sistema agroalimentar — tão vital para a estabilidade global — subfinanciado e mal compreendido.

“Estamos mascarando os efeitos do risco nas cadeias globais de suprimento de alimentos”, diz Zaltzman. “Quando os preços globais dos alimentos sobem, não é Wall Street que sente — geralmente é a África ou a América do Sul.”

O Banco Mundial estima que seriam necessários trilhões em investimentos para tornar o sistema alimentar global mais robusto. Ainda assim, a análise do Earth Track, organização sem fins lucrativos que trabalha para tornar visíveis e quantificáveis os subsídios governamentais prejudiciais ao meio ambiente, mostra que o mundo continua concedendo subsídios ambientalmente prejudiciais no valor de US$ 2,4 trilhões por ano (R$ 14 trilhões na cotação atual). E os mercados de capitais, desenhados para otimizar retornos — e não para prevenção — não estão preparados para responder.

Falta de liderança — e de imaginação

O desafio estrutural do setor de alimentos é econômico e político. Para investidores em busca de retornos estáveis e de longo prazo, o meio da cadeia alimentar — agricultura, processamento e logística — é ao mesmo tempo de alto risco e baixa margem. “Se você é private equity ou venture capital, não consegue extrair retorno. Se é um fundo de pensão, é volátil demais”, observa Zaltzman. “Ninguém está investindo, e isso é uma falha sistêmica.”

A resistência crescente contra normas ESG e contra regulações climáticas só agrava o problema. À medida que a ação climática se politiza, as empresas se sentem menos encorajadas a falar abertamente ou a adotar estratégias conjuntas — o que aprofunda ainda mais os riscos.

Divulgação – EIT Food

Richard Zaltzman é CEO da EIT Food

Ainda assim, Zaltzman vê esperança em iniciativas como a Agricultura Natural Gerida por Comunidades de Andhra Pradesh (APCNF), na Índia, que visa transformar o sistema agrícola por meio de práticas agroecológicas sustentáveis.

“É possível transformar áreas desérticas em terras produtivas em dois ou três anos”, diz ele. “Milhões de agricultores já estão fazendo isso. É um dos segredos mais bem guardados do mundo.”

Os primeiros meses da Covid-19 mostraram como o meio ambiente pode reagir rapidamente quando o sistema é forçado a parar. Mas acreditar que sempre haverá tempo para agir depois é, segundo Zaltzman, “uma mentalidade perigosa”. “É como descobrir uma pílula que te permite estudar para o vestibular em uma semana”, diz ele. “Depois que você vê que funciona, passa a acreditar que sempre poderá deixar para amanhã.”

Os autores do memorando pedem que investidores e conselhos de administração deixem a postura passiva das divulgações e adotem a gestão ativa de riscos. Eles questionam se o seu conselho está tratando essa questão como a crise de alta probabilidade que ela é — e alertam: “Esta crise será ainda mais significativa, com a diferença de que, desta vez, podemos vê-la se aproximando.”

De registros de risco à ação concreta

Para Zaltzman, o que mais urgentemente se faz necessário é uma mudança: das divulgações corporativas de risco para a gestão de risco ao longo das cadeias de valor. No entanto, leis de concorrência muitas vezes impedem esse tipo de ação conjunta.

“Imagine uma avaliação integrada de risco para a cadeia de valor dos grãos — envolvendo os grandes players e os principais investidores. Hoje, é difícil fazer isso legalmente por causa das regras antitruste. Mas talvez seja hora de priorizar a segurança alimentar em detrimento da concorrência de mercado.”

Ele elogia empresas como a Unilever por assumirem compromissos reais com a agricultura regenerativa, mas alerta que poucas iniciativas foram testadas sob pressão do mundo real, acrescentando: “Esse é o verdadeiro critério.”

O panorama maior: o sistema alimentar é uma bolha

A metáfora mais impactante do documento compara o sistema alimentar global a uma “bolha” — construída sobre a confiança excessiva na estabilidade do solo, da água e do clima. Assim como o mercado imobiliário antes de 2008, está inflada com base em suposições falhas. Quando estourar, as consequências serão financeiras, sociais e políticas.

Mas ainda há tempo — se os investidores agirem. O que estamos testemunhando é um raro e franco momento de introspecção vindo de dentro do próprio sistema. Não se trata de maquiagem ESG ou promessas climáticas vagas — é um apelo direto aos agentes financeiros que têm o poder de forçar mudanças sistêmicas.

“Não estamos falando de ganhos”, afirma Zaltzman. “Estamos falando sobre evitar o colapso de um sistema. E o dinheiro ainda está dormindo ao volante.” Em um mundo onde a segurança alimentar tende a se tornar a próxima fronteira dos riscos geopolíticos e financeiros, não fazer as perguntas certas parece nada menos que uma receita para o desastre.

* Felicia Jackson é colaboradora da Forbes Reino Unido, onde escreve sobre a intersecção entre inovação e desafios globais na economia.

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