Disney queria mais da Marvel. Agora, quer menos

O presidente da Marvel Studios, Kevin Feige, admitiu recentemente a colegas que assistir às novas séries e filmes do estúdio — dono de sucessos como Vingadores — começou a parecer mais um dever de casa do que um passatempo.

O problema, segundo Feige, foi o excesso de conteúdo criado para abastecer a Disney+, a plataforma de streaming da empresa-mãe. Na tentativa de manter os assinantes entretidos, a Marvel entregou uma avalanche de histórias interconectadas que acabaram afastando o público e sobrecarregando a equipe criativa. O resultado: queda na bilheteria, perda de relevância cultural e desgaste na qualidade das produções.

Menos séries

Agora, Feige lidera uma espécie de reestruturação interna para recolocar o estúdio nos trilhos. A ordem é reduzir o número de séries de TV e apostar em tramas independentes, que não exijam conhecimento prévio do universo Marvel.

No cinema, o foco é consertar a agenda de lançamentos, após fracassos como Capitão América: Nova Ordem Mundial, que estreou em fevereiro.

O primeiro grande teste dessa nova fase é “Thunderbolts”, filme que estreia nesta semana e conta com um time de coadjuvantes e heróis de segundo escalão salvando o mundo na ausência dos Vingadores.

As estimativas indicam uma abertura entre US$ 70 milhões e US$ 75 milhões nos EUA e Canadá, o que colocaria o título entre os lançamentos mais fracos da Marvel.

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Ainda assim, as críticas iniciais foram positivas, e a expectativa é que um bom desempenho possa preparar o terreno para Quarteto Fantástico: Primeiros Passos, que chega em julho. O enredo desse próximo filme levará diretamente aos dois novos Vingadores, agendados para 2026 e 2027 — produções que a Marvel aposta como essenciais para recuperar sua antiga glória.

Kevin Feige não quis dar entrevista. Esta reportagem se baseia em conversas com mais de uma dúzia de pessoas que trabalham ou já trabalharam com a Marvel Studios.

O “Papa Feige” e os tempos de glória da Marvel

Kevin Feige, hoje com 51 anos, é amplamente reconhecido como o produtor de cinema mais bem-sucedido da Hollywood contemporânea. Ele começou sua carreira como assistente do produtor do filme X-Men (2000) e, no mesmo ano, foi contratado pela Marvel. Desde então, subiu de posição até se tornar o responsável final por tudo: de roteiros e elenco a edição e efeitos visuais.

Sob sua liderança, a Marvel emplacou uma sequência histórica de sucessos, como Homem de Ferro (2008), Guardiões da Galáxia (2014) e Pantera Negra (2018). No meio desse caminho, a Disney comprou a Marvel por US$ 4 bilhões, em 2009.

O auge veio em 2019 com Vingadores: Ultimato, filme que reuniu as tramas e personagens dos 21 longas anteriores do estúdio e arrecadou US$ 2,8 bilhões — um recorde na época.

Durante o auge da Marvel na década de 2010, Feige era extremamente envolvido no processo criativo. Ele deixava a supervisão das filmagens para executivos mais juniores, mas voltava ao trabalho pesado na sala de edição, fazendo alterações significativas e até ordenando novas cenas. Seu braço direito, Louis D’Esposito, repetia uma piada interna: “A gente consegue consertar qualquer filme se filmar de novo.”

Um exemplo: em Thor: O Mundo Sombrio (2013), foram 35 dias de refilmagens — mais do que o tempo de produção de muitos filmes independentes.

Embora o estúdio tenha tido alguns tropeços no início, o método de Feige funcionou quase sem falhas por anos.

Entre 2010 e 2019, todos os lançamentos da Marvel foram sucessos, com média de bilheteria em torno de US$ 1 bilhão por filme. O público adorava o fato de cada produção ter um tom próprio, e de estarem conectadas por uma grande narrativa.

As decisões criativas ficavam a cargo de um pequeno grupo de executivos, apelidado internamente de “o parlamento”. Quase todos estavam na empresa desde o começo, ou entraram como assistentes e foram promovidos, criando uma cultura interna quase familiar.

Feige é visto como um pai carismático e genial — o tipo de líder de quem todos buscavam aprovação e atenção.

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Mais problemas

Logo depois do sucesso de Vingadores: Ultimato, a equipe criativa da Marvel passou a se reunir no estúdio da Disney para uma missão delicada: descobrir qual seria o próximo grande passo para o Universo Cinematográfico da Marvel (MCU).

Mas, nos escritórios próximos dali, a prioridade era outra. O então CEO da Disney, Bob Iger, estava prestes a lançar o Disney+ e precisava rechear o novo serviço com séries originais. A Marvel foi escalada para entregar boa parte desse conteúdo.

“A estratégia virou expansão, expansão, expansão”, resumiu uma pessoa que trabalhava no estúdio na época.

Segundo colegas, Kevin Feige topou o plano com entusiasmo, motivado por vontade de contar mais histórias e também de ser um “bom soldado corporativo”. Mas depois ele admitiu: foi um erro.

Os dois primeiros lançamentos da Marvel no Disney+ chegaram em 2021: Loki (com viagem no tempo) e WandaVision (uma sátira em formato de sitcom que continuava a história de dois heróis de Ultimato). Ambos foram sucesso de público e crítica.

Mas a transição de um estúdio que fazia poucas horas de cinema por ano para dezenas de horas de conteúdo serializado acabou desmontando os processos internos.

Cada série era supervisionada por dois executivos, mas Feige ainda tinha a palavra final sobre todas as decisões criativas importantes — e agora havia muito mais decisões por dia.

Quem trabalhava na Marvel nos primeiros anos da década conta que era difícil conseguir tempo com Feige. Às vezes, equipes passavam semanas desenvolvendo ideias que depois eram descartadas, quando ele finalmente dava sua opinião. E aí mal sobrava tempo para corrigir tudo antes do prazo.

Houve casos de funcionários literalmente correndo pelos corredores atrás de Feige para conseguir aprovações.

Conhecida por ser um dos estúdios mais econômicos de Hollywood, a Marvel entrou na era do streaming gastando como nunca.

Como outros grupos de mídia, o objetivo era impressionar Wall Street com o crescimento acelerado de assinantes — e o custo virou detalhe.

Séries da Marvel feitas no início de 2020 custavam mais de US$ 100 milhões por temporada, algumas chegando perto de US$ 200 milhões, por causa dos astros de primeira linha e efeitos visuais de alto nível.

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Muito conteúdo cansa

Os problemas internos começaram a aparecer claramente nas telas. Muitos espectadores passaram a reclamar que o volume de conteúdo da Marvel era grande demais para acompanhar, e que boa parte parecia cada vez mais fraca ou mal resolvida.

Mesmo com orçamentos altos e nomes de peso, grandes apostas como a série Invasão Secreta, com Samuel L. Jackson, foram rejeitadas pelo público.

Outras produções das quais o estúdio se orgulhava, como Ms. Marvel — sobre uma adolescente paquistanesa-americana que ganha superpoderes —, simplesmente não chamaram atenção.

Nos cinemas, os maiores sucessos da fase recente foram filmes que apelavam para a nostalgia, como Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa e Deadpool & Wolverine, que retomavam personagens e histórias já conhecidas.

Já Homem-Formiga e a Vespa: Quantumania, lançado em 2023, era peça-chave para o futuro da companhia: o vilão principal da trama seria o mesmo do próximo filme dos Vingadores, A Dinastia Kang. Mas o longa fracassou nas bilheterias e foi mal recebido pela crítica.

Fadiga Marvel

Nos bastidores, funcionários passaram a falar com frequência em “fadiga Marvel”. Uma preocupação recorrente era a de que o estúdio havia criado um “clube sem novos fãs” — ou seja, quem não estivesse com todas as séries e filmes em dia não conseguiria entender mais nada das novas produções.

Ao mesmo tempo, a euforia de Wall Street com o crescimento do streaming deu lugar à cobrança por lucro.

Bob Iger e Kevin Feige passaram a olhar com lupa os custos e as escolhas criativas.

Em cima da hora, a Marvel interrompeu a produção do novo Blade (com o personagem vampiro), decidindo que o roteiro não estava bom o suficiente — quando os equipamentos já estavam sendo enviados para os estúdios em Atlanta.

Durante as gravações de As Marvels, de 2023, os diretores receberam pouca atenção de Feige, que estava sobrecarregado. Após o fracasso de Quantumania, ele voltou a se envolver mais no processo, na tentativa de evitar um segundo desastre no mesmo ano.

Mas o estrago já estava feito. A equipe passou por dezenas de versões de uma narração explicativa para tentar resumir as histórias anteriores e ajudar o público a se situar, mas não foi suficiente.

Com um custo estimado em US$ 300 milhões, As Marvels se tornou o maior fracasso da história do estúdio, arrecadando apenas US$ 206 milhões nas bilheteiras globais.

Menos quantidade, mais impacto

Desde os primeiros anos da Marvel Studios, Kevin Feige e seu time criativo — o chamado “parlamento” — se reúnem todo outono em Palm Springs, na Califórnia, para planejar o futuro da companhia.

Mas o encontro de 2023 teve um tom bem diferente dos anos anteriores. Boa parte das séries e filmes da Marvel estava dando errado, e o estúdio havia feito as primeiras demissões da sua história.

Na reunião, os executivos discutiram se ainda dava tempo de salvar Vingadores: A Dinastia Kang, além de repensar a estratégia para TV: as novas séries passariam a ter tramas independentes do universo principal, para atrair novos fãs sem exigir que eles tenham assistido a tudo antes.

A decisão foi clara: cortar drasticamente a produção para o streaming.

“No nosso caso, a quantidade diluiu a qualidade — e a Marvel sofreu muito com isso”, afirmou o CEO Bob Iger, em novembro, no evento DealBook, do New York Times.

A partir de 2025, a Marvel vai lançar apenas uma ou duas séries live-action por ano, e algumas já estão sendo desenvolvidas com múltiplas temporadas planejadas — sem ligação direta com os filmes do cinema. Um executivo sênior assumiu o controle da divisão de TV, liberando Feige para focar exclusivamente nas telonas.

No topo das prioridades está o plano para os próximos dois filmes dos Vingadores — uma franquia que rendeu 4 dos 5 maiores sucessos de bilheteria da Marvel.

Nomes consagrados

No início de 2024, a equipe decidiu abandonar o vilão Kang e começou a pensar em outro nome forte para antagonizar o próximo encontro de super-heróis.

Feige, inclusive, já vinha conversando há mais de um ano com Robert Downey Jr., o eterno Homem de Ferro, para voltar aos estúdios Marvel. Um dos papéis discutidos? Dr. Destino, um dos vilões mais icônicos dos quadrinhos da Marvel. Ainda não havia decisão sobre em qual filme ele apareceria — até que veio o estalo.

Trazer de volta nomes consagrados é uma das opções mais caras de Hollywood, mas quem conhece Feige diz que ele prefere confiar em quem já provou valor — especialmente em momentos de crise.

Para empolgar os fãs com a nova fase, a Marvel preparou uma revelação bombástica: em pleno palco da San Diego Comic-Con 2024, Robert Downey Jr. tirou uma máscara de Dr. Destino e revelou sua identidade. O momento viralizou nas redes sociais em minutos.

“Eu vi o anúncio inteiro e, sem exagero, caí de joelhos”, contou Bailey Bowen, assistente de professor de 25 anos, na estreia de Thunderbolts, nesta semana, em Hollywood.

Na apresentação do filme, o diretor Jake Schreier contou:

“Quando comecei esse projeto, o Kevin disse: ‘Faça diferente.’”

O resultado nas bilheterias deste fim de semana vai mostrar se os fãs da Marvel estão prontos para esse novo momento.

Robert Downey Jr. tira a máscara de Dr. Destino – Foto: Getty Images

5 anos de pesadelo

De certa forma, a Marvel voltou à estratégia que adotava antes da obsessão pelo streaming, como se os últimos cinco anos tivessem sido apenas um pesadelo.

Assim como fez no começo da Marvel Studios, Feige agora trabalha com um plano de longo prazo para o cinema.

Os próximos filmes dos Vingadores devem introduzir os X-Men, um dos times de heróis mais populares da editora, no MCU. Segundo fontes próximas, Feige já tem um plano de 10 anos para esses personagens.

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