O papel da moda na história dos papas

Com o falecimento do Papa Francisco, a Igreja Católica entra em um momento de transição profunda. Reconhecido por sua simplicidade e humanidade, o pontífice argentino também traduzia esses valores em sua forma de se apresentar ao mundo. Por séculos, durante a história dos papas, a imagem refletiu signos de autoridade espiritual e temporal, com códigos visuais marcados por luxo e solenidade. Francisco escolheu romper com algumas das tradições, adotando uma estética mais sóbria e deixando um legado que vai muito além da fé, mudando também a maneira como a figura do papa é representada visualmente.

Religioso idoso vestindo traje papal branco e segurando uma bengala, simbolizando continuidade na história dos papas.

Foto: Papa Francisco (Alessia Giuliani via Reuters)

Esta semana marca o início do conclave, um dos ritos mais antigos e enigmáticos do mundo moderno, que definirá o próximo pontífice. O novo escolhido, seja quem for, vai carregar consigo o peso simbólico de uma Igreja em constante evolução e adaptação. Será que ele vai retomar elementos mais ornamentados ou manter a sobriedade cultivada por Francisco? Equilibrar a tradição com o cenário atual é um exercício delicado, mas inevitável. Afinal, a figura do papa se encontra no espaço entre o eterno e o presente.

Enquanto o mundo aguarda o desenrolar dos fatos, a gente mergulha na história das roupas papais, explorando seus símbolos, sua linguagem e sua influência cultural. E também mostramos como a moda, vira e mexe, se inspira no Vaticano.

Desde os primeiros séculos do cristianismo, a vestimenta papal foi utilizada como uma forma de reforçar a narrativa desejada, afirmando sua história, autoridade e dimensão espiritual. Nada é aleatório. Dos bordados à cartela de cores, cada camada de tecido carrega um peso simbólico cuidadosamente mantido ao longo do tempo. Alguns símbolos são indissociáveis das figuras dos papas. A característica mitra aponta para o céu. O vermelho remete ao sangue dos mártires e ao Espírito Santo. Já os detalhes em dourado narram a história da instituição, herdada dos códigos da Roma Antiga e da era bizantina.

História dos papas

Foto: Papa Bento XVI (Andreas Solaro/AFP/Getty Images)

O branco que hoje conhecemos como a “cor do papa” só foi oficializado no século XVI. Antes disso, pontífices usavam também vermelho, dourado e tons mais próximos do vestuário litúrgico comum. Mas o branco, além de remeter à pureza e à luz, tornou-se um contraste visual poderoso no meio da multidão, destacando como uma presença inconfundível, iluminada.

Por muito tempo, o alto clero, especialmente os papas, se vestiam com tanto luxo que suas roupas poderiam facilmente ser descritas como alta-costura — e, de certa forma, eram. Afinal, couture se refere a peças de acabamento inigualável, tudo feito com os melhores materiais, em níveis de preciosidade muito além da confecção comum. Capas bordadas a ouro, mantos com metros de veludo, joias elaboradas. Tudo recheado de símbolo, pensado para causar impacto e comunicar, mesmo à distância, a presença de um soberano espiritual. Em uma época pré-tecnológica, as vestes suntuosas tinham o propósito de amplificar a mensagem, posicionando o papa como figura divina e escolhida.

Começando pelo sapato vermelho. Usado por séculos pelos pontífices, ele representa o sangue dos mártires e a disposição de seguir até o fim a missão da Igreja. Também carrega ecos do Império Romano, em que o vermelho era reservado aos imperadores, reforçando a dupla natureza do papa: espiritual e política.

Durante o pontificado de Bento XVI, o calçado voltou a chamar atenção, não apenas pela cor viva entre as vestes brancas, mas pela manutenção de um gesto histórico que já não era visto com tanta frequência. Denotando permanência.

Mão com anel dourado sobre roupa branca. O anel simboliza legado e tradição na história dos papas.

Foto: Papa Francisco (Toby Melville/POOL/AFP/Getty Images)

O anel do pescador, usado exclusivamente pelo papa e criado especialmente para cada pontífice, é destruído ao fim de seu ministério. Gravado com a imagem de São Pedro lançando as redes, o anel simboliza sua condição de sucessor direto do primeiro apóstolo. Sua destruição, feita com um cinzel, é um dos rituais mais solenes da transição entre papados, marcando, literalmente, o fim de uma era.

Há ainda a mitra (o toucado cerimonial que se desdobra em duas pontas), a estola litúrgica, os mantos ricamente bordados e o solidéu — o pequeno gorro branco que acompanha os papas mesmo fora das grandes celebrações.

As roupas dos pontífices são normalmente confeccionadas por alfaiates especializados, e não por grandes marcas ou estilistas de moda. Apesar de especulações sobre o sapato vermelho de Bento XVI ter sido assinado pela Prada, a informação não procede — o calçado foi um presente de um artesão italiano. Ainda assim, em raras ocasiões, a aproximação entre moda e Vaticano ultrapassa a fronteira simbólica, como em 1997, quando João Paulo II usou um traje assinado por Jean-Charles de Castelbajac, todo bordado com cruzes coloridas.

Algo mudou imediatamente quando Jorge Mario Bergoglio apareceu na sacada da Basílica de São Pedro, em 2013. A escolha do nome Francisco, em homenagem a São Francisco de Assis, deixou claro antes mesmo de sua primeira declaração qual seria sua postura. Com um simples “boa noite” e um silêncio que atravessou o mundo, o novo papa iniciava um pontificado que romperia com séculos de códigos visuais tradicionais.

Francisco recusou a cruz de ouro e manteve a de ferro que já usava em Buenos Aires. Optou por um anel de prata banhado, em vez do tradicional anel de ouro. Escolheu sapatos pretos, e não os vermelhos de seus antecessores. E eliminou os bordados e as sobreposições cerimoniais de muitas de suas aparições públicas. Não se tratava de um gesto estético, mas de um reposicionamento completo da imagem do papado. Para Francisco, a missão era vista como serviço.

Essa parcimônia visual, quase uma antítese do esplendor romano, teve efeitos profundos: ao se afastar do visual luxuoso, Francisco não rejeitou a tradição, mas resgatou seu sentido original — o de comunicar uma mensagem espiritual acima de qualquer símbolo de poder temporal. A simplicidade virou forma de presença. A discrição também agiu como uma escolha política e pastoral. O silêncio fala, e a ausência pode ser mais poderosa do que o excesso. Paralelamente, a ascensão de tendências como o quiet luxury trouxe para o mundo da moda uma filosofia similar.

Cardeal em manto vermelho ao lado de uma capa papal, refletindo traje histórico religioso. História dos papas

Foto: Heavenly Bodies: Fashion and the Catholic Imagination (Reprodução/Instagram)

Falando nisso, como a moda foi e continua sendo influenciada pelo catolicismo?

A estética católica, que em sua origem carrega significados profundos, oferece um repertório visual riquíssimo: silhuetas solenes, tecidos nobres, símbolos codificados e ritos cerimoniais inundados de sentido. Além daquela teatralidade intrínseca — os gestos coreografados, os tecidos que se movem em procissão, a luz filtrada pelos vitrais. Por isso mesmo, foi estudada, reinterpretada e referenciada inúmeras vezes por estilistas ao longo dos anos. E essa relação, inevitavelmente, é marcada por tensão e fascínio. Quem lembra do Met Gala de 2018, com o tema Corpos Celestiais: Moda e Imaginação Católica?

O padre católico romano e teólogo norte-americano David Tracy escreveu no catálogo da exposição que “a cultura altamente visual do catolicismo é uma influência natural para todo tipo de artista — e os estilistas de moda não são exceção”. Ele também rebateu críticas ao tema com uma reflexão que ajuda a entender a profundidade dessa relação: “O cristianismo, na verdade, não pode ser compreendido se ignorarmos a beleza e a bondade presentes em toda a criação, ou os elementos trágicos do sofrimento, do mal e do pecado na vida. Essa é a imaginação analógica católica.”

Modelo com traje dourado ornamentado e mitra papal, inspirando-se na história dos papas, em desfile noturno.

Foto: Dolce & Gabanna (Divulgação)

Nomes como Dolce & Gabbana trazem isso no DNA, incluindo desde o início a Igreja Católica e sua importância na cultura italiana como tema central. Rendas pretas em vestidos quase monásticos, bordados de santos, coroas e relíquias transformadas em acessórios. Reproduzindo, em desfiles e campanhas, cenas que mais parecem uma procissão barroca, com direito a crucifixos dourados, véus e mantos que evocam figuras como Madonas e mártires.

Já Valentino tem em seu repertório clássico cortes e paletas que remetem às vestes eclesiásticas: vermelhos litúrgicos, mangas amplas, golas estruturadas. De um lado polêmico, Jean Paul Gaultier, desde os anos 90, explora a fusão entre iconografia religiosa e moda de rua, criando imagens que oscilam entre o sagrado e o subversivo.

Riccardo Tisci em seu período na Givenchy, John Galliano tanto na Dior quanto na Margiela, Thom Browne e Alexander McQueen são outros exemplos importantes que buscaram inspiração na Igreja Católica e em seus signos. De forma mais ampla, é difícil encontrar uma grande maison que, em algum momento, não tenha dialogado com essa herança visual — de Christian Lacroix a Chanel e Balenciaga, a estética ligada à Igreja atravessa coleções, épocas e linguagens, reafirmando sua força simbólica e imagética dentro da moda.

Resta saber se o próximo pontífice vai seguir a linha minimalista de Francisco ou se vai trazer de volta a opulência à moda papal. Como a gente sempre fala por aqui, a forma como nos vestimos é uma ferramenta poderosa de comunicação. Roupas podem funcionar como veículos de expressão, estratégia, linguagem e memória — e isso vale tanto para nossos guarda-roupas quanto para o Vaticano.

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